2006/05/01

Anônimos do Vermelhão

De acordo com os compromissos, horários e rotinas que se cria e vive, vamos descobrindo e passando a viver com várias outras pessoas, anônimas, mas que se tornam conhecidas pelos rotineiros encontros - o que faz com que as circunstâncias que provocam esses encontros se consolidem religiosamente, a cada dia.
Uma boa circunstância, como exemplo, é o ônibus das 5:55hs, o "vermelhão" da ida, capital-interior.
Através desse ônibus, encontro com meus anônimos colegas todos os dias úteis. A começar pelo motorista: rosto simpático, moreno e baixinho; logo, o trocador: sonolento; a moça loira que desce do ônibus um pouco depois que eu entro; os policiais que entram pela porta traseira; um rapaz, de uns 27 anos, que parece ir trabalhar e uma mulher, que traja uniforme escolar e desce do ônibus num desses povoados de beira de estrada, onde julgo que ela leciona.
Acredito que cada um desses, assim como eu, vêem os outros como personagens de uma peça teatral, onde cuja ausência causaria diferença notável.
Apesar do mesmo teatro, observei que ocorre diferença entre os atos, ou seja, observei a diferença do comportamento das pessoas que invertem o sentido da viagem, fazendo o sentido interior-capital, onde passando a frequentar o ônibus "vermelhão" comecei a conviver com usuários daquele transporte, rotineiramente num certo horário, e pude chegar ao ponto de já bater o olho e separar aqueles que estavam em rotina dos que não estavam, e até mesmo se estavam a passeio...
Mas a diferença e ponto-forte da viagem interior-capital é o comportamento das pessoas: falam alto, fofocam, dormem batendo a cabeça contra o vidro da janela, reclamam, se exibem, riem alto e adoram fazer piadas contra a empresa do ônibus.
Eu, por gosto, costumo viajar fazendo alguma leitura, e espero que meus colegas de viagem me rotulem baseados neste fato, podendo eu assim, fugir aos demais comportamentos citados.
Certa vez, eu estava no ponto, na volta para casa e passou um moço de carro: parou, julgou o meu destino e se ofereceu a cobrar o mesmo preço na viagem de carro. Típico de cidade de interior, todos se conhecem. Particularmente não conhecia o tal moço, somente de vista.
Pensei rápido: meus colegas sentiriam minha ausência!, mas logo fui tomada pelos incentivos da engenharia hawaiiana, ao lembrar da pródiga frase "É porque nunca se sabe" e perguntei:
-Posso ir na frente? -e fui entrando no carro.
No próximo ponto, mais três passageiros entraram e rumo à capital conheci o nome do moço e descobri que ele era um dos meus anônimos colegas de viagem, do ônibus de volta.
O moço motorista, eu e os três passageiros viemos estrada afora conversando sobre o "vermelhão" e contando causos: "aquele homem que caiu no ônibus", "um dia que sentei no corredor", "a mulher que dormiu e vomitaram em cima dela", "o dia que o ônibus quebrou", "os passageiros nervosos", "o motorista mascarado", "todos esfomeados por uma cadeira"... e fomos, cada um relatando um causo, despertando o próprio comportamento "vermelhão" que cada um ali tinha. Só viemos a "acordar" com um comentário do moço motorista, que lembrou que a cor daquele carro era vermelho, foi quando vimos que o nosso comportamento estava tão digno, como que se estivéssemos no próprio "vermelhão".
Consolidamos nosso coleguismo, cada um expôs o seu compromisso e logo nos vimos na capital.
Sem as várias paradas e podendo correr um pouco mais devido ao porte do carro, economizamos quase 30 minutos e creio que cada um levou consigo não só o tempo poupado, mas a certeza de que mais que um meio de transporte, o "vermelhão" é como gripe de inverno: contagiosa, transformadora e ás vezes prejudicial, mas quando lembrada, vem acompanhada de cobertor e chocolate quente.

(setembro de 2003)

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